29 de março de 2010

O recomeço

Do que Carolina precisava, e queria, era recomeçar. Sair do caos a que pertencia e conhecer novos ares, novas possibilidades de destino, conversas, pessoas. Qualquer coisa que ajudasse a deixar o passado de lado e qualquer coisa que permitisse a ela uma nova vida. Nem que fosse preciso uma nova identidade, peruca e um novo estilo de vida, ela estava disposta a mudar. Desde pequena assistia aos filmes de suspense onde a protagonista precisava ir para um lugar distante pois corria sério perigo de vida. E era assim que Carolina se sentia, numa emboscada, encruzilhada perdida, no fim da rua. Por isso que a pouco tempo começara a escrever. Mostrava à Beatriz tudo o que sentia, mas Beatriz sempre muito desinteressada com qualquer coisa que não fosse ela mesma, dizia que tudo bem, que tudo estava ótimo. E Carolina queria crescer. Se sentia claustrofóbica naquele lugar, como se estivesse presa a um prédio em chamas e não importasse o quanto gritasse, ela nunca sairia dali. Era isso: o mundo estava pegando fogo, e ninguém poderia salvá-la exceto Arthur. E quando tudo parecia definitivo, quando os números no calendário perderam o sentido, a vida o transformou em milhões de pedaços. E se perderam.

Matheus Oliveira

28 de março de 2010

Então acordei, mais me dei conta de que o sonho tinha sim um pouco de realidade. Você estava saindo lentamente do meu campo de visão, tentei, e continuo tentando fazer isso parar. Mais a cada dia, quando eu penso que está tudo ótimo, a crise rebate sobre nós.

Gabriela Santiago
Cada um só sabe mesmo as coisas que suporta saber. Não sabe outras.

Viviane Mosé
E eu escuto: seu erro é usar a única força que te mantém viva pra fazer teatrinho de gente.

Tati Bernardi
Tanto esforço pra andar ereta. Os remédios que refilam minhas gorduras, deixando esse quadradinho que encaixa em todo lugar. Minha bolha pronta pra sair rolando de tudo, agora mutilada. Tanto esforço pra caber nos lugares, um canto no mundo, uma missão na terra, um pedaço de sofá de festa de amigo, uma rebarba de coração alheio, um resto de cama.

Tati Bernardi

22 de março de 2010

É engraçado como os seus buracos encaixam perfeitamente nos meus exageros.

Bárbara Bueno

O contraste da minha sujeira


O mundo inteiro estava chovendo lá fora, as pessoas mergulhando na propria consciência para não sentir nada, todos estavam caminhando para o inferno, e ainda assim eu só tinha olhos para os seus olhos. Enquando o mundo se sujava cada vez mais na sua lama, Bárbara estava pulando de precipicios, Bárbara estava tentando amar sem defender o coração. E eu queria dizer, eu só queria dizer que você não pode ter orgulho de mim, que tudo o que eu faço é sujo, e que, no fim das contas, eu vou sujar você também. Você é tão linda, você é tão pura, você é tão humilde, que eu preciso muito te sujar só para me sentir mais limpo.
Bárbara preencheu o vazio do meu estômago nas manhãs mais entediantes, Bárbara esteve lá para lamber todas as minhas feridas, por mais que as suas já tivessem o gosto suficientemente amargo da tragédia. São tão poucos os momentos lindos que nós vemos ao nosso redor que, depois de a conhecer, eu quis prestar uma homenagem diária a ela, eu quis que ela fosse um pouco igual a mim só para eu não me sentir fora desse mundo.
Ela quis ser minha amiga, e me perguntou aonde doía. Acontece que ela nunca chegou muito perto da sujeira, e para perguntar isso, ela ficou colada em mim. Queria te dizer, Bárbara, enquanto eu dou risada meio cinica e leio um livro shakesperiano todos os pontos que doem em mim. Mas chega a ser pecado contar isso nos seus ouvidos, então me deixa só agarrar na barra das suas calças e me leva embora daqui. E sim, continua a aliviar todas as minhas marteladas, todas as minhas quedas e todos os meus baques. Eu não sei viver, por isso me deixa virar só espectador da sua vida. Por favor, não se importe com os meus dedos, minhas quinas e minhas pontadas, chega mais perto.
E Bárbara volta a ser única e sozinha, e sai andando para cheirar outros mundos e volta. E diz, com o rosto colado no meu, que não gosta de falar de si, porque o que vem de dentro assusta demais o que está do lado de fora, e o que está fora nunca entra dentro, nunca. Eu quero que você saiba, menina, que o que vem de dentro de você é macio, e que se você precisar, te dou meu braço. Te dou meus dedos, minha mão, minhas pernas, meu nariz, meu queixo, meus olhos, te dou todos os meus cantos sujos, menina. Ninguém sabe o que se passa dentro da gente, mas eu imagino o que passa dentro de você, e só por isso eu preciso tanto estar aí dentro.

Matheus Oliveira, inspiração de Tati Bernardi.

21 de março de 2010



É mais fácil viver longe de você. É mais fácil acordar feia e isso ser só mais uma visão da vida. É mais fácil dormir sem querer alcançar a vida ao lado, porque é preciso morrer um pouco para dormir e eu odeio essa sensação de intensidade absurdamente viva que eu sinto cada vez que miro um pedaço seu, espalhado no seu mundo entreaberto.

Tati Bernadi

19 de março de 2010

Fúria

É que Carolina ainda não entendera completamente a respeito dos seus sentimentos. Ela estava chateada. Não, ela estava furiosa. Furiosa porque agora seus amigos se tornaram todos iguais a ela: tudo muito morno, tudo muito cinza. Por que eles haviam perdido a cor?
Maio. Acabara de começar o curso de cinema. Estava tão obcecada em ter uma nova vida que se esquecia como se vive. E acabou vivendo assim, sem se dar conta de como se fazia, se envolvendo com seus discos antigos e com seus livros de ficção cientifica, embora isso ela não contara para ninguém. Por causa de sua crítica natural e seu desejo de manter a ordem no meio do caos, fazia inúmeras perguntas. Sua personalidade desordenada combinava claramente com os seus cabelos pretos desgrenhados. Enquanto todos olhavam para ela com o nariz empinado, ela achava graça. Sempre se lembrava de quando era uma criança e seu pai dizia que ela se parecia com um esquilo, a forma como ela ria e mostrava os dentes. Pequenina, de cabelos negros ondulados, era agora uma mulher, mas menina ela nunca deixara de ser.
E assim, Carolina todos os dias tentava se manter estável. Virginiana com ascendente em aquário e sol e lua em virgem, ela simplesmente não podia ficar sentada, somente a observar os passos dos outros. Mesmo que daqui por diante seus passos sejam cada vez mais timidos e tortos, ele gostaria que ela tentasse. E tentou.

Matheus Oliveira

18 de março de 2010

A vida entre os mortos

Carolina estava sentada na varanda, como em todos os dias antes de dormir. Ali, parada, ela parecia somente uma pintura leve em preto e branco, não aparentava nenhuma queda ou tristeza. Sim, ela ouve as batidas na porta, mas não há ânimo para atender Beatriz de novo.
- Carolina, quer sair de casa hoje?
- Não, estou bem aqui. Está tudo bem.
(silêncio)
- Você precisa dizer Adeus e deixar o que ficou para trás no passado. Tô preocupada!
- Eu já disse, Beatriz, que não vivo de passado. Só estou cansada demais, os ultimos dias da minha vida não têm sido fáceis.
- Últimos dias? Você está assim há meses! Vive sentada nesse banco, cansada demais com suas próprias forças. Não come direito, não sai com os amigos, não faz nada que uma pessoa normal deveria fazer. Quando foi a ultima vez que você dormiu em paz? E os seus ideais, Carolina?
Como dizer à Beatriz que ela não podia mais ser tão divertida, que o que restou de suas forças estavam concentradas em não desmoronar? Ela tentara de tudo: ioga, terapia, academia, bares, teatros, mas nada funcionara. Como dizer que as suas esperanças tinham ido embora. Quem entenderia? Quem é que fica?
- Eu to bem!
- Não tá, Carol. Eu vejo. Parece uma morta-viva, não tem nenhuma grande vontade! Eu tento, sabia? Estou aqui, tentando te dar vida, mas você não aceita nada que vem de fora desde que ele foi embora.
Alguma coisa dentro de Carolina havia morrido. Tudo era verdade, e se não fosse tão verdade, não teria doido tanto.
- Então pega tua recompensa e vai viver entre os vivos.

Matheus Oliveira

6 de março de 2010

De hoje em diante


E aos poucos, e bem devagar, ela se esquece dos golpes, chutes e pontapés baixos e fortes que a vida lhe deu, lhe dará. Não importa quão intensa tenha sido sua história, aos poucos ela vai se esquecer de como é não sentir coisa alguma. Essa garota, que não era pedra - mas também não era tão doce, se levantará. Não por ser forte, pelo contrário: ela terá medo de enfraquecer e começará a sugar o mundo, que hoje a faz tanto mal. Ela se levantará, sim, simplesmente pelo fato de não conseguir guardar ódio no seu coração. Nem amor.
(...) Daqui por diante, ela ama. Mesmo sabendo que isso lhe proporcionará muitas lágrimas e dores pelo meio do caminho. Daqui por diante, e por enquanto, tá limpo, tá limpo, sem engano. Ela se jogou da ponta de um precipicio, e reza todos os dias para não encontrar, tão cedo, o chão.

Matheus Oliveira
para os olhos de jabuticaba, pela inspiração diária
Eu te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas confusas não saibam amar. Pena também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha do que é bonito. Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas — se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.

Caio Fernando Abreu
Sou convencional, apesar de não ser normal. Se eu me corto, eu sangro. Se bato o dedo no pé da mesa, dói. Sou uma pessoa comum. Acredito no até que a morte nos separe e também no eterno enquanto dure. Acredito que, se eu sou capaz de ser fiel, alguém mais pode ser. Acredito que eu não sou uma laranja, mas preciso da minha outra metade pra me sentir inteiro. Valorizo as pequenas atitudes, assim como condeno pequenas mancadas. Sou rancoroso, guardo por anos uma coisa que me magoou de verdade. Sei perdoar. Passo por cima dos erros pra ficar junto das pessoas que eu gosto. Tenho meus limites. O primeiro deles é meu amor-próprio. Perdôo uma vez, porque errar é humano. Perdôo duas porque o ser humano é estúpido às vezes. Mas não posso viver perdoando, porque isso seria incompetência minha.

Brena Braz
Desconfio que já não há apaixonados hoje em dia. Um ou outro jovem pode afirmar que está gamado, ou tarado, por uma mulher. Seja qual for a expressão em voga, paixão de verdade, daquelas boas, de uivar para a lua, acho que não existe mais. Para mim as novas gerações já não estão sujeitas a essa grave doença que nos afetou a todos do nosso tempo. E que ainda nos ameaça a cada dia.

Fernando Sabino

3 de março de 2010

A bailarina de chumbo


Não, dessa vez não tinha soldado de chumbo: era só a bailarina, e essa não precisava de soldado nenhum para se sentir confortavel. Sem armas de fogo, sem devoções e nem paixões destrutivas: a menina, que era quase soldado e quase bailarina, era o ultimo segundo, a decisão, o calor, o suspiro. Tinha o desejo de ter o mundo, e quando o possuia, somente uma pequena parte dele o bastava, porque o mundo nunca fora inteiro. O mundo tinha seus ideiais, seus próprios planos para ela, e ela caminhava sozinha. Talvez isso, talvez aquilo. Talvez, o mundo mesmo, por ser covarde demais, a assustava, e ela, por ser de chumbo demais, assustava o mundo. Isso de conhecer um ao outro seria a morte, o martírio. O mundo era unico, e ela se dividia. Se dividia em várias partes, cada qual com o seu gosto, seu cheiro, tuas perguntas. Se dividir era uma forma de sentir os cantos do mundo, sem tocar neles. Por isso perguntava aos habitantes do mundo como é que se vivia, como é que se via, como é que se sentia? Ela nunca havia sentido. Não por falta de tentativas, não por falta de opções. Tentou uma, duas vezes se comprometer. Mas como é que se vive? Então, lutava mais para acabar com os sentimentos internos do que a favor deles. No fundo, o que ela sabia era a realidade: quando alguém a abraçava, era menos alguém de verdade e mais um desenho ensaiado. E mesmo que não quisesse se perder de ninguém, mais importante agora era não se perder de si mesma. Ela sabe, ela sabe.

Matheus Oliveira
Para a menina com os olhos de jabuticaba

1 de março de 2010

- Fomos felizes algumas vezes, não?
- Talvez o melhor seja dizer que, algumas vezes, nós não fomos tristes.

Daniel Macivor
[...] mas outra coisa que aprendi nessa vida é que substituições não existem. Nunca dão certo, quer dizer. Então é melhor nem tentar. Sabedoria que só se atinge quando se sofre longamente por um amor. Qual é o primeiro pensamento do sofrido amoroso? É: vou arranjar outro amor, o mais rápido possível. Não funciona pai. Tem o rito de passagem. Tem o luto necessário. Tem todo o aprendizado com a perda.

Fernanda Young
- Você acha que o nosso amor pode fazer milagres?
- Eu acho que o nosso amor pode fazer tudo aquilo que quisermos. É isso que te traz de volta pra mim o tempo todo.

Caio Fernando Abreu

Tem que ser equilibrista até o final. E suando muito, apertando o cabo da sombrinha aberta, com medo de cair, olhando a distância do arame ainda a percorrer – e sempre exibindo para o público um falso sorriso de serenidade. Tem que fazer isso todos os dias, para os outros como se na vida você não tivesse feito outra coisa, para você como se fosse a primeira vez e a mais perigosa. Do contrário seu número será um fracasso.


Fernando Sabino
Sente as pulsações. O frio da lâmina entre os dedos. A cicatriz, lembrança de uma outra queda. Do apartamento ao lado chegam os sons desfeitos de algo que devia ser música. Um vento indeciso de madrugada entra pela janela. Está sentado na cama, corpo nu, pés descalços, costas curvas. A lâmina vibra entre os dedos. Nenhum pensamento. Só espera. Atenção fixa em si mesma. Dobra os ombros, como se chorasse. E não corta. Joga a lâmina pela janela, vai-se curvando para si mesmo. Os braços se cruzam, enlaçam os joelhos, a cabeça afunda entre as pernas. Não chora sequer. No cinzeiro, o cigarro esquecido queima. Um fino fio de fumaça sobe aos poucos indeciso, adensando o ar que se enche de olhos, de mãos, de gestos incompletos, vozes veladas, palavras não formuladas. Sem compreender, vaga entre a fumaça e tomba. Como um cego, vendo apenas para dentro.

Caio F. Abreu
Desisti. E isso é a coisa mais triste que tenho a dizer. A coisa mais triste que já me aconteceu. Eu simplesmente desisti.


Tati Bernardi
Nas minhas investigações debaixo do sol, vi que a corrida não é para os ágeis, nem a batalha para os bravos, nem o pão para os prudentes, nem a riqueza para os inteligentes, nem o favor para os sábios: todos estão à mercê das circunstâncias e da sorte. O homem não conhece sua própria hora: semelhantes aos peixes apanhados pela rede fatal, aos passarinhos presos no laço, os homens são enlaçados no momento da calamidade que se arremessa sobre eles de súbito.

Eclesiastes 9:11