30 de abril de 2011

Eu te amo, repete sozinha para o escuro toda noite, pouco antes de seu corpo dissolver-se na espuma do sono, eu te amo. E se pudessem saber, os outros, todos saberiam que isso não deixa de ser uma vitória, tão dúbia que parece também uma completa derrota.

Caio Fernando Abreu
Como o amava - e tanto - quis dizer-lhe que tivesse cuidado. E que se curvasse ao me ver baixando a mão até o cinto para retirar o punhal e lentamente cráva-lo inúmeras vezes no seu peito múltiplo (...)

Caio Fernando Abreu
Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta com essa fome na boca, beber um copo de leite, molhar plantas, jogar fora jornais, tirar o pó de livros, arrumar discos, olhar paredes, ligar-desligar a tevê, ouvir Mozart para não gritar e procurar teu cheiro outra vez no mais escondido do meu corpo, acender velas, saliva tua de ontem guardada na minha boca, trocar lençóis, fazer a cama, procurar a mancha de esperma tua nos lençóis usados, agora está feito e foda-se, nada vale a pena, puxar as cobertas, cobrir a cabeça, tudo vale a pena se a alma, você sabe, mas a alma existe mesmo? e quem garante? e quem se importa? apagar a luz e mergulhar de olhos fechados no quente fundo da curva de teu corpo, tanto frio, naufragar outra vez em tua boca, reinventar no escuro teu corpo moço de homem apertando contra meu corpo de homem moço também, apalpar as virilhas, o pescoço, sem entender, sem conseguir chorar, abandonado, apavorado, mastigando maldições, dúbios indícios, sinistros argúrios, e amanha não desisto: te procuro em outro corpo, juro que um dia eu encontro.

Não temos culpa, tentei. Tentamos.

Caio Fernando Abreu

21 de abril de 2011

Não diz nada, você não diz nada. Apenas olha para mim, sorri. Quanto tempo dura? Faz pouco despencou uma estrela, e fizemos, ao mesmo tempo e em silêncio, um pedido, dois pedidos. Pedi para poder tocá-lo. Você não me conta seus pedidos (...) Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo tua saliva, afundo. Escuridão e umidade, calor rijo do seu corpo contra minha coxa, calor rijo do meu corpo contra tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos. (...)
(...) no fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelo da minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do teu ombro (...) e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem (...)
O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos para naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. (...) Alguma coisa então pára, todas as coisas páram (...) Quero fazer um feitiço para que nada mais volte a andar. Quero ficar assim, no parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse meu jeito de ir vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse meu jeito de despedaça. (...) Fico noite, fico dia. Fico farpa, sede, garra, prego. Fico tosco e você se assusta com minha boca faminta voraz desdentada de moleque mendigo pedindo esmola neste cruzamento onde viemos dar.
A cidade está louca, você sabe. A cidade está doente, você sabe. A cidade está podre, você sabe. Como posso gostar de você no meio desse doente podre louco? (...)
Não temos aonde ir, nunca tivemos aonde ir. Um nojo, vezenquando me dá um asco - nojo é culpa, nojo é moral - você se sente sórdido, baby? (...)
Como se lutássemos - só nós dois, sós os dois, sóis os dois - contra dois mil anos de amontoados de mentiras e misérias, assassinatos e proibições. Dois mil anos de lama, meu amigo. Esse lixo atapetando as ruas que suportam nossos passos que nunca tiveram aonde ir.
(...) e vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no teu ouvido duro, na tua alma fria, e vou dizendo louco, e vou dizendo longo sem pausa - gosto muito de você gosto muito de você gosto muito de você.
Viver agora, tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã. (...) por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo estava acostumado apenas a consumir pessoas como quem consume cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe, mas foi só mais um engano? E quantos restam ainda na palma da minha mão?

Caio Fernando Abreu

19 de abril de 2011

Ah. Menina, o que foi que aconteceu com você? O que foi que fizeram com você? Eu não sei, eu não entendo. Roubaram a minha alegria (...) roubaram a minha alegria, é tudo uma farsa, aquele olho desmaiado, é tudo uma farsa, roubaram a minha alegria. A primavera, o vento, esperei tanto por essa margarida, e veja só. Atrofiada. Aleijada. As pedras frias do chão da cozinha, rolar nua neste chão, qualquer dia faço uma loucura.

Caio Fernando Abreu

16 de abril de 2011

Eu me sinto às vezes tão frágil, queria me debruçar em alguém, em alguma coisa. Alguma segurança. Invento historinhas para mim mesmo, o tempo todo, me conformo, me dou força. Mas a sensação de estar sozinho não me larga. Algumas paranóias, mas nada de grave. O que incomoda é esta fragilidade, essa aceitação, esse contentar-se com quase nada. Estou todo sensível, as coisas me comovem...

Caio Fernando Abreu
Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir ás minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado de alma e sim um signo do zodíaco.

Gabriel García Marquez
Eu me agarro à beiradinha do meu amor, eu imploro pra que ele fique, ainda que doa mais do que cabe em mim, eu imploro pra que pelo menos esse amor que eu sinto por você não me deixe, pelo menos ele, ainda que insuportável, não desista(...) Que se foda a auto-ajuda, que se fodam os livros com homens carecas, que se foda o terceiro olho e que se foda a psicologia: eu sou mesmo metade sem você e que se foda! Se antes de você aparecer eu já te amava, eu já te esperava, eu já sabia que você existia, como eu posso não te amar agora que você tem forma, sorriso, coração e nome?

Tati Bernardi
Deu vontade de ficar mais tempo junto, deu vontade de levar essa história até o fim – e eu não tenho a menor idéia do que você pensa a respeito, a gente não conversa sobre isso, só fica fazendo uma linha nada-tem-muita-importância, ou algo assim.

Caio Fernando Abreu
Em outros tempos diria “Tomei raiva de você”. Mas nem foi raiva, vejo isso agora. É só tristeza mesmo. “Tomei tristeza de você”.

Caio Fernando Abreu