21 de abril de 2011

Não diz nada, você não diz nada. Apenas olha para mim, sorri. Quanto tempo dura? Faz pouco despencou uma estrela, e fizemos, ao mesmo tempo e em silêncio, um pedido, dois pedidos. Pedi para poder tocá-lo. Você não me conta seus pedidos (...) Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo tua saliva, afundo. Escuridão e umidade, calor rijo do seu corpo contra minha coxa, calor rijo do meu corpo contra tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos. (...)
(...) no fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelo da minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do teu ombro (...) e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem (...)
O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos para naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. (...) Alguma coisa então pára, todas as coisas páram (...) Quero fazer um feitiço para que nada mais volte a andar. Quero ficar assim, no parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse meu jeito de ir vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse meu jeito de despedaça. (...) Fico noite, fico dia. Fico farpa, sede, garra, prego. Fico tosco e você se assusta com minha boca faminta voraz desdentada de moleque mendigo pedindo esmola neste cruzamento onde viemos dar.
A cidade está louca, você sabe. A cidade está doente, você sabe. A cidade está podre, você sabe. Como posso gostar de você no meio desse doente podre louco? (...)
Não temos aonde ir, nunca tivemos aonde ir. Um nojo, vezenquando me dá um asco - nojo é culpa, nojo é moral - você se sente sórdido, baby? (...)
Como se lutássemos - só nós dois, sós os dois, sóis os dois - contra dois mil anos de amontoados de mentiras e misérias, assassinatos e proibições. Dois mil anos de lama, meu amigo. Esse lixo atapetando as ruas que suportam nossos passos que nunca tiveram aonde ir.
(...) e vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no teu ouvido duro, na tua alma fria, e vou dizendo louco, e vou dizendo longo sem pausa - gosto muito de você gosto muito de você gosto muito de você.
Viver agora, tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã. (...) por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo estava acostumado apenas a consumir pessoas como quem consume cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe, mas foi só mais um engano? E quantos restam ainda na palma da minha mão?

Caio Fernando Abreu

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